PARECER JURÍDICO ACERCA DA POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL NA JUSTIÇA MILITAR

 

Trata-se de parecer voltado à identificação da possibilidade de aplicação do Acordo de Não Persecução Penal na Justiça Militar, tendo em vista que ainda há muita divergência jurisprudencial acerca de sua aplicabilidade ou não.

Como é sabido, em 21/01/2020 entrou em vigor a Lei nº 13.964/2019, que introduziu, dentre outras alterações, o Acordo de Não Persecução Penal no Código de Processo Penal.

Especificamente, quanto a este instituto, sua inserção na Lei efetivou a antiga intenção do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) de inserir no sistema criminal brasileiro a figura despenalizadora do acordo.

Tal benefício foi trazido no artigo 28-A do Código de Processo Penal, sendo seus requisitos, em síntese: a) crime ter sido cometido sem violência ou grave ameaça; b) pena mínima inferior à quatro anos; c) confessar a prática do delito; d) não ser reincidente ou não ter sido beneficiado por acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo nos 05 anos anteriores ao cometimento do fato.

Entretanto, a Lei nº 13.964/2019 silenciou quanto à aplicação do acordo de não persecução penal no âmbito da Justiça Militar, sendo que, da mesma forma, não trouxe vedação expressa quanto a sua efetivação.

Desta feita, resta a indagação: O silêncio legislativo permite ou não a sua aplicação?

De forma objetiva, explicar-se-á o posicionamento desta Comissão referente a interpretação mais correta a ser seguida.

Pois bem, como é de conhecimento, toda vez que ocorre alteração no Código de Processo Penal, é necessário analisar a possibilidade de aplicação desta alteração no Processo Penal Militar, para tanto, o artigo 3º, alínea “a” do Código de Processo Penal Militar estabelece, in verbis:

 Art. 3º Os casos omissos neste Código serão supridosa) pela legislação de processo penal comum, quando aplicável ao caso concreto e sem prejuízo da índole do processo penal militar;

Ou seja, sempre que houver omissão no Código de Processo Penal Militar (como é o presente caso), aplicar-se-á o disposto na legislação de processo penal comum.

Neste sentido, sábios os ensinamentos de Rodrigo Foureaux:

O Código de Processo Penal Militar data de 21 de outubro de 1969 e sofreu apenas 06 (seis) alterações, enquanto que o Código de Processo Penal Comum data de 03 de outubro de 1941 e passou por 57 alterações, o que demonstra o esquecimento, por parte do legislador, na legislação militar, sendo necessário aplicar institutos previstos para o processo penal comum no processo penal militar, até porque o CPPM autoriza no art. 3º, “a” a aplicação, nos casos omissos, da legislação processual penal comum. (disponível em https://www.observatoriodajusticamilitar.info/single-post/2020/01/29/o-acordo-de-n%C3%A3o-persecu%C3%A7%C3%A3o-penal-na-justi%C3%A7a-militar)

Ora, se o artigo 28-A não traz qualquer óbice expresso quanto à aplicação do benefício em discussão, bem como a legislação militar é expressa acerca da possibilidade de aplicação subsidiária da legislação penal comum em caso de omissão, evidente a possibilidade de se estender o benefício à Justiça Militar, mormente porque é mais benéfica ao acusado e porque jamais o silêncio legislativo poderá ser interpretado em desfavor do operado.

Ainda nesta toada, tem-se que, caso o legislador realmente quisesse vedar a aplicação deste instituto à justiça militar, far-se-ia de forma expressa, assim como o fez no artigo 90-A da Lei nº 9.099/95.

Ao contrário disso, no artigo 28-A, §2º, do Código de Processo Penal foi elencado um rol taxativo, trazendo as hipóteses em que não se aplica o Acordo de Não Persecução Penal, não vedando a aplicação aos crimes militares, ad extenso:

2º O disposto no caput deste artigo não se aplica nas seguintes hipóteses:

I – se for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei;

II – se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas;

III – ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e

IV – nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.

Se realmente o legislador tivesse a intenção de vedar os crimes militares, obviamente que traria de forma expressa, dentro deste rol taxativo, o que não ocorreu.

Nesse ponto, convém trazer em relevo que, para Sylvia Ono:

A Resolução nº 181/2017 do CNMP não perdeu sua eficácia nesse ponto, vez que o silêncio legal embutido no artigo 28-A do CPP, agora nos permite a aplicação do benefício do ANPP aos crimes militares por analogia, consubstanciado na aplicação subsidiária da legislação do processo penal comum quando a legislação processual penal castrense for omissa. (ONO, Sylvia Helena. O direito subjetivo do infrator ao acordo de não persecução penal nos crimes comuns e nos crimes militares. In: ROTH, Ronaldo João. Acordo de não persecução penal: estudos no processo penal comum e militar. 1ª. ed., São Paulo: Dia a dia forense, 2020, p.133)

Ademais, deve ser considerado o Princípio da Isonomia entres os acusados, isso porque não é justificável que, por se tratar de crime militar ou agente militar, seja negado o benefício, até por que, não há razão jurídica que justifique conferir tratamento diverso para crimes iguais, sob pena de violação do princípio constitucional supramencionado.

Desta feita, sábias lições de Jorge Cesar de Assis:

(…) Deixar de aplicar o Acordo de Não Persecução Penal aos crimes militares fere a isonomia (art. 5º, I, da CF), na medida em que um crime praticado no mesmo contexto fático permitirá que haja soluções distintas, como a hipótese em que dois policiais, um militar e um civil, atuem juntos em serviço e pratiquem o crime de peculato. Para o policial civil será possível realizar o ANPP, para o policial militar não será possível, simplesmente, em razão da condição de militar. (Disponível em https://jusmilitaris.com.br/sistema/arquivos/doutrinas/ANPP_E_JUSTI%C3%87A_MILITAR.pdf)

Também são os ensinamentos de Rodrigo Foureaux:

(…) Certo é que ser militar impõe condições e ônus que os civis não têm, mas os militares não possuem uma degradação de direitos fundamentais e o ANPP visa preservar o direito fundamental à liberdade. (Disponível em https://www.observatoriodajusticamilitar.info/single-post/2020/01/29/o-acordo-de-n%C3%A3o-persecu%C3%A7%C3%A3o-penal-na-justi%C3%A7a-militar)

Somado a isso, tem-se que a RESOLUÇÃO 101 – CSMPM, datada de 26 de setembro de 2018, em seu Capítulo VII, artigo 18, trazia de forma expressa a aplicação do acordo de não persecução penal em matéria atrelada à Justiça Militar, in litteris:

Art. 18. Não sendo o caso de arquivamento, o Ministério Público Militar poderá propor ao investigado acordo de não persecução penal, nos casos de crimes militares por equiparação, tal como assim considerados por força da Lei nº 13.491/2017, quando, cominada pena mínima inferior a 4 (quatro) anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, o investigado tiver confessado formal e circunstanciadamente a sua prática, mediante as seguintes condições, ajustadas cumulativa ou alternativamente:

Verifica-se que o próprio Conselho Superior do Ministério Público Militar consignou acerca da possibilidade de emprego do acordo quando diante da Justiça Militar.

Está-se diante de direito, como dito, mais benéfico ao réu, o qual, inclusive, não viola qualquer princípio militar, e, em observância à analogia e ao princípio da isonomia, é possível sim admitir seu oferecimento quando se tratar de crime militar.

Não obstante, a não aplicação do instituto acarreta em violação ao Princípio da Legalidade, pois, ainda que se reconheça a disciplina, a hierarquia e o pundonor militares como signos imprescindíveis para a vida na caserna e, que, por essa razão, devem ser levados em consideração pela Justiça Militar, não se mostra possível transpor este princípio constitucional.

Eventual interpretação negativa feita a partir da omissão legislativa se trata de uma visão tradicional da persecução penal e da política punitiva, expansionista, seletiva e simbólica, descomprometida com o novo modelo punitivo desenhado a partir da Constituição Federal.

Também são sábias as palavras de Antônio Facuri ao enfrentar que o Direito Penal Militar não recebe a devida atenção dos legisladores, sendo que se faz possível a aplicação das benesses existentes no Direito Penal Comum:

(…) “não há outra alternativa, qual seja a de aplicar também na Justiça Militar as benesses introduzidas pelo Direito doméstico, desde que não ofensivas aos princípios regedores do Direito Militar (FACURI, Antônio. Aplicação das inovações do Direito Penal (dito) comum na Justiça Militar: imposição ou omissão. Revista Ministério Público Militar, Brasília, n. 21, abr. 2010, pg. 172).

No mesmo norte, apenas a título exemplificativo, traz-se o HC 127.900 julgado pelo Supremo Tribunal Federal, no qual se entendeu pela aplicação do artigo 400 do Código de Processo Penal (interrogatório como sendo o último ato da instrução) à Justiça Militar.

Ou seja, evidente que sempre que houver qualquer alteração, ou mesmo disposição pretérita, nas legislações penais comuns, e que, obviamente, seja compatível com a Justiça Militar, beneficiando ao acusado, ela deve ser aplicada, sem qualquer restrição ou medo por parte do Judiciário.

Por qual razão, no caso da aplicação do Acordo de Não Persecução Penal, isso seria diferente? Por ser mais benéfico ao réu, não violar qualquer princípio militar, e, em observância à analogia e ao princípio da isonomia, é totalmente admissível seu oferecimento quando se tratar de crime militar.

Vale ressaltar, de igual forma, que eventual violação aos princípios da caserna podem ser devidamente analisados e punidos em Procedimento Disciplinar Administrativo, não sendo possível, através deste único argumento, afastar uma benesse criminal favorável ao acusado, já que a punição penal deve ocorrer em ultima ratio.

Importante: o objetivo do Acordo de Não Persecução Penal é estritamente evitar uma Ação Penal, e não afastar punições administrativas!

Portanto, jamais a aplicação desta benesse poderá causar sentimento de impunidade dentro da caserna, já que existem procedimentos disciplinares internos para tanto.

Não só isso, diversos Tribunais vêm aplicando, de forma correta, o benefício trazido na Lei nº 13.964/2019, na Justiça Militar. A título exemplificativo, traz-se um julgado do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em que, já em primeiro grau, foi firmado Acordo de Não Persecução Penal entre o Ministério Público Militar e o acusado, sem trazer qualquer impedimento a sua aplicação:

HABEAS CORPUS – CRIME MILITAR – FALSO TESTEMUNHO – AGENTES POLICIAIS INQUIRIDOS ACERCA DA OCORRÊNCIA DE LESÃO CORPORAL GRAVE EM ATIVIDADE ACADÊMICA – PROMOVIDO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL, COM POSTERIOR HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL – INCONFORMISMO DA DEFESA – ALEGADA NULIDADE ANTE A AUSÊNCIA DE AUDIÊNCIA PARA FORMALIZAÇÃO DO ACORDO ( CPP, ART. 28-A, § 4)- PACTO REALIZADO ESPONTANEAMENTE E NA PRESENÇA DE SEUS DEFENSORES – SOLENIDADE QUE SERVE COMO PRESERVAÇÃO DA LEGITIMIDADE DO ACORDO, EVITANDO O IMODERADO USO DE MEDIDAS NEGOCIADAS PELO ÓRGÃO MINISTERIAL COMO CONDIÇÃO DE NÃO PROCESSAMENTO CRIMINAL – INADEQUAÇÃO DO ATO SOLENE COMO MEIO PARA DEBATES ENVOLVENDO O TRANCAMENTO DO FEITO CRIMINAL – AUSÊNCIA DE AUDIÊNCIA – MERA IRREGULARIDADE NO CASO – EIVA AFASTADA. PERGUNTAS REALIZADAS AOS PACIENTES NO DECORRER DO PROCEDIMENTO INVESTIGATIVO (…) (TJ-SC – HC: 50106504620218240000 Tribunal de Justiça de Santa Catarina 5010650-46.2021.8.24.0000, Relator: Salete Silva Sommariva, Data de Julgamento: 27/04/2021, Segunda Câmara Criminal)

Portanto, evidente que o Acordo de Não Persecução Penal pode e deve ser aplicado quando diante da Justiça Militar.

 

Elaborado por:

GUILHERME ASSUNÇÃO HERBST – OAB/PR 100.454

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